Texto por Mathias Bloch

– Me faça uma pergunta ou eu te faço uma pergunta!
Diz o pai à sua filha de 4 anos.
– Faz a pergunta, pai. Diz a filha.
– De onde vem esse leite que você está tomando?
A filha ri, e responde:
– Do mercado!
– Certo, mas quem faz o leite? Pergunta o pai.
– Não sei… Responde a filha.
– Da vaca! Diz o pai.
– Eca! A vaca faz leite?
– Sim, filha.
– E de onde vem a vaca, pai?
– De H’Shem, filha.
– Sério? E de onde vem H’Shem?
– H’Shem é a origem de tudo, filha.

Essa é a história contada pelo Rav Moshe Zeldman, shlita, da dinâmica que faz todo dia com seus filhos “me faça uma pergunta ou eu te faço uma pergunta”. É interessante observar que essa é a essência do judaísmo, se não fizermos a pergunta, alguém ou algo irá nos perguntar. E uma das perguntas mais relacionadas à essa parashá é: seria possível eu acreditar que D’us como Criador e conciliar com a visão científica?

Talvez esse seja o maior conflito moderno se considerarmos a ideia de religião como um todo. E muitas vezes faz com que pessoas que busquem espiritualidade encarem a Torá como um mero guia, não uma forma de observar e interpretar esse mundo – que, diga-se de passagem, foi dada diretamente por D’us.

Então qual é o propósito da Torá ao nos contar como foi a origem do mundo físico? É possível dizermos que não é o objetivo falar da criação em si, mas sim da ordem que surge a partir do caos. O propósito do relato da criação não é estabelecer uma linha temporal, mas sim para dar a ênfase na ordem natural do universo.

Atualmente a teoria mais aceita – do ponto de vista científico – é a Teoria do Big Bang, e se fizermos uma comparação direta entre a descrição de Bereshit e a teoria, rapidamente são identificadas várias discrepâncias. A Torá fala da criação de luz, enquanto o Big Bang cita matéria – por meio de quarks que eventualmente formam átomos.

O RAMBAN – Rabbi Moshe Ben Nachman, século XIII – acredita que a luz é usada como uma metáfora para a criação da matéria, já que ele acredita que H’Shem usou a energia criada por Ele no primeiro verso para criar algo que ele chamou de “uma fina camada de substância a partir do nada, que continha todas as informações do universo”, essa substância, na Torá, teria recebido o nome de tohu – “nada”.

O Sforno – Rav Ovadia Sforno, séc XIV – concorda com a explicação dada pelo RAMBAN e acredita que todo o universo é criado a partir de um ponto, que recebe o nome de tohu, dizendo que aquela partícula teria a capacidade de se multiplicar, ou expandir, e transformar-se em qualquer outro tipo de matéria.

Ou seja, ao explorarmos a ideia contida nas primeiras frases da Torá é possível nos aproximar de algo que a ciência descreveu a pouco tempo. A ideia de uma partícula que pode se transformar em qualquer outra é muito semelhante ao conceito modernos de quarks. Sforno chega a dizer que essas partículas são “imaginárias”, e atualmente ainda são, uma vez que não são diretamente observáveis na natureza.

Além disso, adições modernas da física citam a ideia de que tudo teria começado a partir de uma luz com temperatura muito alta, essa luz, por sua vez, teria resfriado e formado as primeiras partículas de matéria (como demonstrado em um trabalho de 2023, por Joseph Dominicus Lap, na revista Physics Letters B).

Esse é uma das centenas de exemplos contidos nas interpretações milenares da Torá que se aproximam da ciência – que ainda está sendo desenvolvida. Portanto, cabe a pergunta: estariam Torá e ciência tão separados assim?

Aparentemente não, afinal a ciência é uma forma válida de observação – por parte do ser humano – do universo como um todo, mas nunca podemos nos esquecer que a Torá também é uma forma válida de observação do mesmo universo. Se a Torá é como falamos: “Torat emet” – a Torá é A verdade -, e a ciência é uma tentativa de entender a verdade, elas não podem se contradizer, afinal só existe uma verdade, só cabe a nós aprender a interpretar essas duas formas de observação.