Como uma mulher, que vê nos direitos humanos os elementos basilares para as relações sociais no séc. XXI, confesso que a Parashat Tazria é, no mínimo, desconcertante. O texto da porção semanal tem início com uma apresentação de diferenças explícitas entre o masculino e o feminino no texto. Assim mesmo, é desconcertante também a categorização do parto como um estado de impureza.
Desde a perspectiva do feminino, à primeira vista este texto poderia ser simplesmente rejeitado ou ignorado, mas optei por ressignificá-lo, entendendo que, mais do que um manual de conduta, a Bíblia é um livro que nos expõe a toda sorte de dilemas, para os quais temos o dever moral de refletir sobre eles e aprender com eles.
Ainda antes de entrar na questão das diferenças entre masculino e feminino, a primeira pergunta que me vem à mente é: qual é o sentido de uma mulher ficar impura ao trazer vida ao mundo?
Nos tempos bíblicos, o parto era – e ainda o é em certa medida – um momento no qual a vida e morte são convocadas como testemunhas, mas apenas uma delas sairá vitoriosa. A precariedade tanto das condições sanitárias quanto do conhecimento médico e científico no passado, levavam a altas taxas de mortalidade neonatal. Assim, talvez a luta da mulher com a morte para trazer à luz e à vida a uma criança motivasse a necessidade de um mergulho na mikve para a remoção das impurezas que a proximidade da morte pode ter provocado.
Mas a mikve, como a entendemos, não se presta ao mero papel de uma prática higiênica. O banho ritual judaico se reveste de simbolismo ligado ao nascimento (ou ao renascimento). Frente a um novo ciclo na vida, neste caso específico, de uma mulher, que nasce a uma nova experiência de maternidade, submerge na mikve para renovar-lhe as forças. Enquanto a letra ‘mem’ vem da palavra ‘mayim’, que significa ‘águas’. Mem se associa também à matriz feminina, o ventre, que porta a capacidade de dar a vida. Mem também está ligada à palavra ‘met’, que é ‘morte’. Além da dualidade vida/morte, está na raíz da palavra ‘mikve’ também a palavra ‘kav’, em alusão à ‘força’. Submerge-se na mikve, envolvida em água acima e abaixo e pelos lados, em um ato simbólico de renovação.
Superada aquela primeira pergunta relacionada à impureza pós-parto, teremos que nos enfrentar a um dilema ainda mais difícil de apresentar qualquer resposta minimamente aceitável para um tratamento diferenciado se a criança nascida era menino ou menina.
Que justificativa pode haver para o nascimento de uma menina produzir um duplo período de impureza, comparado com o nascimento de um menino?
De todas as leituras que fiz durante esta semana buscando responder a essa pergunta, talvez a mais aceitável para justificar essa inequidade, do ponto de vista feminino, tenha sido a que apresentou a rabina Lauren Berkun, diretora de programas rabínicos do Shalom Hartman Institute, em Jerusalém. A saída que ela propõe ao dilema apresentado em Levíticos 12, para o duplo período de impureza quando nasce uma menina, é a de que seriam necessários 40 dias pela pureza da mãe e outros 40 dias pela pureza da filha, já que a menina traz em si o potencial de gerar uma nova vida, que também passa potencialmente pelo encontro vida/morte vivido no momento do parto.
Mais do que uma purificação, resultado de um processo prévio de impureza, a mikve é uma boa aliada em cada fase da vida em que renascemos a uma nova realidade, seja ela a maternidade/paternidade, seja a assunção de novos papéis profissionais ou pessoais significativos.
Shabat Shalom!
*Kelita Cohen é psicóloga, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB) e estudante de rabinato no Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), além de integrar Comissão Religiosa da ACIB.