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A porção que será lida em todo o mundo judaico nesta semana é daquelas que parecem descoladas da realidade, especialmente a nossa, em pleno século XXI. Essa dissociação se deve em parte ao fato de não estar mais no escopo dos nossos rituais religiosos a prática de sacrifício de animais, como fora outrora, quando o templo em Jerusalém estava de pé. Mas não apenas pela falta do templo tais práticas desapareceram. Ao longo do nosso percurso histórico, como povo, vimos arvorecer o conhecimento e os rituais sangrentos serem substituídos por tefilá, especialmente as orações que são aromatizadas com kavaná (intenção).

No entanto, um pouco sem saída quanto a pular as partes que não fazem eco com a contemporaneidade (já que ano após ano percorremos novamente todo o texto que vai do Gênesis a Deuteronômio, ou de Bereshit a Devarim), a minha leitura dessa porção neste ano se orienta do macro para o micro, do todo para a parte.

No todo, o tema central é a pureza/impureza. Os dois capítulos que a compõem se referem ao ritual de purificação para a cura – no caso da lei da lepra ou do leproso – e ao ritual de purificação relacionada aos fluidos corporais masculinos e femininos.

Aproximando a lente, foco em dois pequenos trechos, um de cada capítulo:

“E se ele for pobre e as suas posses não lhe permitirem, tomará (…) conforme as suas posses…” [Lev. 14:20]
“Esta é a lei daquele que tem fluxo (sêmen ou menstruação); para o homem e para a mulher…” [Lev. 15:32-33]

Nessas duas citações, consigo identificar pontos de contato com um princípio que transcende ao tempo e, penso eu, deveria ser incorporado às diferentes culturas de modo transversal: a equidade.

A noção de equidade pressupõe o reconhecimento da diversidade, e que, por sua vez, supera a ideia de igualdade. Ela se baseia no entendimento de que as pessoas têm necessidades diferenciadas, e de que tampouco há igualdade em termos de experiências e oportunidades. Equidade é dar a cada um a justa medida das suas necessidades e cobrar de cada um na justa medida das suas possibilidades.

E é exatamente o que conseguimos extrair dessa narrativa. Se duas pessoas padecem do mesmo mal e o ritual de cura envolve sacrifício, para que haja equidade na cobrança da retribuição, o texto orienta que se leve em conta a capacidade da pessoa, que pode ser em relação às suas posses ou, agrego eu, ao seu conhecimento. 

Já no segundo extrato, a ênfase encontra-se na diversidade. Para uma narrativa feita por homens, onde não raro encontramos formas de tratamento bastante diferenciadas relacionadas ao gênero, podemos encontrar uma mínima porção na qual a diversidade é vista com equidade. Por mais que eu possa discordar da tônica de que aquilo que procede dos nossos corpos – quer o sêmen, quer o sangue – seja algo impuro (ao contrário, estão muito mais conectados à vida e à pureza), a lei descrita se aplica a pessoas de ambos os sexos.

Quem sabe assim, em meio aos fragmentos do texto, consigamos encontrar caminhos para curar ao menos em parte as feridas de uma sociedade fragmentada pela discriminação, pelo preconceito e pelas desigualdades.

Shabat Shalom!

Kelita Cohen é psicóloga, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB) e estudante de rabinato no Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), além de integrar a Comissão Religiosa da ACIB.

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