Um ano mais se passou e voltamos a nos encontrar aos pés do Sinai, “BEHAR” [no Monte, em português]. Em geral, escutamos comentários sobre os ciclos pelos quais passamos, mas não estou certa de que esta seja a melhor representação das experiências humanas. As vivências não são circulares (ou, ao menos, não deveriam ser). Talvez a metáfora mais adequada para representar o recorrido que muitas vezes percorremos pelo mesmo caminho seja uma espiral, não um círculo. Afinal, o desenvolvimento humano acontece orientado ao futuro, no tempo irreversível. Significa dizer que, mesmo que visitemos um lugar onde já estivemos antes, mesmo que leiamos um livro por segunda ou terceira vez, mesmo que abracemos os nossos filhos em cada manhã e ao anoitecer, a experiência anterior não é a mesma da atual. 

Na minha jornada pessoal, foi Behar o meu primeiro contato direto com o pergaminho da Torá, no Kotel. Até algum tempo antes, eu não sei ao certo se eu me permitia aspirar por uma oportunidade como esta, porque eu não conseguia ver as correntes invisíveis que me afastavam dela pelo simples fato de ser mulher. Hoje, no aniversário do meu bat mitsva, volto a me encontrar com o mesmo texto. Mas a relação que se estabelece entre a leitora e a obra já não pode ser a mesma. O texto está ali, gravado em tinta sobre o couro, e nada pode mudá-lo. No entanto, eu já não sou a mesma. Leio o mesmo texto e novas palavras me saltam aos olhos e me causam surpresa, ou mesmo estranhamento. 

“… e proclamarei liberdade em toda a terra, a todos os seus moradores”. (Lev. 25:10)

A mesma porção que eu li naquele momento, demanda de nós “proclamar liberdade”. Pessach é também chamada Chag haCheirut (Festa da Liberdade), mas a palavra ‘cheirut’ não está presente no texto que leio em Behar, senão ‘deror’. Mesmo que no português a mesma palavra tenha sido adotada para traduzir ambos os termos do hebraico, abro o comentário de Rashi para ver o que ele me esclarece a respeito. Este, citando palavras do Rabi Yehuda, apenas diz que ‘deror’ denota liberdade.

Enquanto na primeira havia um chamado a cada indivíduo para fazer sua escolha pela liberdade, a segunda nos convoca a agir para dar liberdade a outros no sentido de fazê-los saber que são capazes de fazer suas próprias escolhas.

Deror e Cheirut falam de duas faces da liberdade, sendo que uma não é possível sem a outra. Só depois de cruzar o Mar Vermelho e decidir eu mesma seguir em frente é que, desde o lugar de um ser livre, sou convocada a empenhar meus maiores esforços para que outros possam exercer a sua liberdade.

Novamente aos pés do Sinai (Behar), vai ficando mais clara a responsabilidade que toda liberdade traz consigo. Mas essa consciência veio sendo construída ao longo do caminho. Como pesquisadora, a minha experiência de imersão em unidades de internação para jovens privados de liberdade possibilitou desenvolver em mim a empatia para com esses e tantos outros indivíduos invisibilizados e silenciados atrás das grades e concertinas de prisões concretas. Logo a realidade foi se fazendo mais nítida aos meus olhos, e comecei a ver à minha volta outro grupo silenciado historicamente, as mulheres, que mesmo não estando acorrentadas fisicamente, o estão psicológica ou emocionalmente.

Da minha sobrinha Vitoria, com seu grupo de extensão “Núcleo de Expressão Feminina”, do curso de Direito da USP, reproduzo a citação de Rupi Kaur:

“Qual é a maior lição que uma mulher pode aprender? Que desde o primeiro dia, ela sempre teve tudo o que precisa dentro de si mesma. Foi o mundo que a convenceu que ela não tinha”. 

Lamentavelmente, há aqueles que se valem do mesmo livro que me permitiu ter consciência do meu papel transformador na sociedade, para subjugar e manter a outros reféns dos seus dogmas e interpretações. Como me disse Salomão, meu marido, durante o café-da-manhã de hoje, não poderia ter sido escolhido um melhor nome para ‘livro’, levando-se em conta que a educação liberta. Não à toa a Bíblia é conhecida como “o livro” por excelência. Ele, o livro, já não ocupa a mera classe gramatical de substantivo, mas de verbo (o verbo livrar, libertar, conjugado na primeira pessoa do singular). “Eu livro, digo eu, o livro”. As palavras contidas em seu interior não mudam, mas a minha relação com o texto muda e tem o poder de mudar as minhas atitudes.

Assim, fez sentido para mim o post da amiga Hilda Lemos, o qual reproduzo aqui. São palavras de sabedoria de autor não identificado, cujo título é “A Pedra”:

“O distraído nela tropeçou.
O bruto a usou como arma.
O empreendedor a usou para construção.
O camponês dela fez um assento.
Michelangelo dela fez uma escultura.
Davi com ela matou o gigante.
Jesus mandou removê-la para ressuscitar Lázaro.
Observe que a diferença não está na pedra, mas na atitude das pessoas.”

A diferença está na atitude. E é de atitude que a jovem paquistanesa Malala Yousafzai fala:

“Eu levanto a minha voz, não para que eu possa gritar, mas para que aqueles sem voz possam ser ouvidos… não é possível prosperar quando metade das pessoas ficam para trás”.

A nossa liberdade (no sentido de Cheirut) só será plena quando à nossa volta os muitos que se encontram escravizados por outrem, quer concretamente, quer simbolicamente, possam ser também libertos (Deror).

Kelita Cohen é psicóloga, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB) e estudante de rabinato no Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), além de integrar a Comissão Religiosa da ACIB.

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