[Comentário da porção semanal “Behaalotecha” – Números 12]
Entre os diferentes temas tratados na porção da Torá lida nesta semana [Behaalotecha], um deles se destaca por apresentar uma resposta desigual aplicada a homens e mulheres frente à igualdade de condições no cometimento de um ato tido como condenável.
O tema em questão é introduzido em Números 12:1, um trecho que traz à cena quatro personagens: duas femininas (Miriam e a mulher cuxita) e duas masculinas (Moisés e Aarão).
Sobre as duas personagens femininas, Tamara Cohn Ezkenazi e Andrea L. Weiss, em “The Torah – A Women’s Commentary”, chamam a atenção para o fato de que uma dessas mulheres (Miriam) ocupa um papel ativo e central na história, enquanto a outra (a mulher cuxita) recebe um papel figurante, que sequer deixa seu nome registrado na história. Dela se diz apenas a origem étnica em um tom pejorativo, uma evidente busca por desqualificá-la pela cor da sua pele.
Sobre as duas personagens masculinas, Moisés indiscutivelmente ocupa a posição de máxima autoridade sobre todo o povo, enquanto Aarão não apenas participa nessa liderança na condição de mensageiro de Moisés junto ao Faraó, como também ele será investido mais adiante com o poder sacerdotal.
A passagem bíblica em questão reforça o triunvirato do poder exercido pelos três irmãos Moisés, Aharon e Miriam, que vem sendo descrito em diferentes episódios da história do povo hebreu desde a saída do Egito. O verso 2 do capítulo 12 menciona a reivindicação de Miriam e Aarão ao mesmo status de porta-vozes de Deus, tão quanto Moisés.
Mesmo reconhecendo essa tríplice liderança, a narrativa também deixa evidente o esforço do narrador em imputar apenas à parte feminina desse tripé a responsabilidade pelo que ele define como errado, o que faz dela digna de ser punida. O verso 1 começa assim dizendo:
O verbo usado para descrever a ação meritória de punição cometida por Miriam e Aarão é apresentado na sua forma singular feminina, quando o seu sujeito é plural e, por convenção social, deveria ser masculino, já que havendo um homem entre uma ou várias mulheres, o verbo deveria ser conjugado no plural masculino.
À primeira vista, pode parecer um erro de concordância do narrador, livre de intencionalidade, até que nos deparamos, no verso 10, com a punição de Miriam, unicamente, sob a acusação de haver questionado a autoridade patriarcal exercida por Moisés. Miriam é acometida de tzara’at, uma doença não muito semelhante à lepra (descrita nos parashiot Tazria e Metzorá), atribuída ao autor do grande pecado capital de lashon hará [a língua maledicente].
Não parece ser a primeira vez que Aharon comete um ato dito condenável, sobre o qual nenhuma condenação lhe advém. Aos pés do Sinai, quando ele reúne as joias do povo e fabrica o bezerro de ouro, os envolvidos nesse ato pecaminoso são exterminados, enquanto Aharon é uma vez mais poupado, sem qualquer justificativa para a desigualdade no juízo.
É intrigante pensar os caminhos percorridos pelo masculino e o feminino nesse fragmento de texto em particular – que reflete a ideologia subjacente à narrativa bíblica em sua maioria – a mesma ideologia que sustenta a misoginia (ódio e violência contra a mulher) ainda em nossos dias. A punição que recai sobre Miriam é na pele, o maior órgão humano, que reveste todo o nosso corpo e que faz a fronteira entre o interior e o exterior. A pele é o ponto de contato com o mundo externo, com o outro.
Aqui voltamos ao ponto inicial da nossa leitura: as duas personagens femininas têm suas punições associadas à cor da pele. Pelo fato da pele de Miriam ter se tornado branca como a neve, ela é confinada fora do acampamento por sete dias. E pelo fato da pele da mulher cuxita (etíope) ser negra, ela teve como punição a invisibilidade e o silenciamento numa história da qual ela é apresentada como sendo o pivô.
A misoginia deixa marcas de violência não apenas na pele física de tantas mulheres provocadas por espancamentos, que têm levado a um número crescente de feminicídio, mas também na sua pele simbólica, aquela que a leva a perder o contorno de si mesma, deixando de reconhecer-se como um sujeito de direitos.
É nessa arena que a releitura da parashá desta semana desafia a leitura tradicional do texto, aquela que justifica a prática de opressão contra as mulheres, a sua proibição de se posicionar contra aquilo que está em desacordo com seu conjunto de valores, bem como qualquer classe de violência física e simbólica. É uma batalha no campo discursivo, buscando transformar um discurso patriarcal, repetido por homens e mulheres, em um discurso pautado pela equidade de direitos.
Enquanto essas questões não nos afetarem a tal ponto de colocar a nossa sensibilidade à flor-da-pele, continuaremos a reproduzir os mesmos padrões que perpetuam a desigualdade entre homens e mulheres.
Kelita Cohen é psicóloga, doutora em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB) e estudante de rabinato no Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), além de integrar a Comissão Religiosa da ACIB.